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O Último Fenício VIII


VIII

   As pálpebras pareciam queimar ante a claridade intensa. Abriu os olhos forçosamente e com certa dificuldade. Não sabia bem onde estava; mal distinguiu um corredor. Levantou-se trôpego e resfolegante. A vista embaçada divisou uma figura que, pouco a pouco, foi tomando alguma forma mais definida e assim pôde perceber de quem se tratava – ''não é possível!'' – balbuciou. Só lhe tinha vaga lembrança, mas conhecia seu rosto por fotografias, onde posava ao lado da mulher mais importante de sua vida: seu pai ali estava, de pé, com o cenho franzido, apontando uma pistola. Antes que fizesse qualquer movimento, ouviu-se um estampido e a arma disparou – a bala atravessou Nikola e atingiu a parede no outro lado. O rapaz aturdido não sentiu dor, tampouco sofreu qualquer ferimento. Todavia, a superfície caiada exibia um orifício e dele um líquido escuro escorreu – o sangue descia pela parede sem cessar. Um grito invadiu o ambiente, logo acompanhado de um choro estridente. Nikola, entendendo mal o que se passava, tentou correr naquela direção, escorregando no sangue, já espalhado pelo chão, transformando-se em jorro, subindo rapidamente e sufocando o rapaz.
   Tudo se deu muito rápido – a cena, transcorrida em segundos, durou horas para Maurice e Christian que não mais sabiam o que fazer. Nikola recobrou a consciência de seu corpo embebido nos calores de transpiração. Depois de reconhecer o quarto e mexer cada membro, levantou o braço e segurou firmemente a mão do francês.
-Maurice, eu vi!
-Viste a entrada? O tesouro?
-Não, não, não! Eu vi meu pai!
-Teu pai?
-Sim, meu pai! Os sonhos não diziam respeito à Helga, Maurice! Os sonhos falavam de minha mãe e meu pai!
-E como se mal os conheceste?
-Meu avô mentiu, meus pais não morreram em um naufrágio! Meu pai matou minha mãe e emparedou seu corpo na antiga casa em que morávamos. Mesmo assim, o crime foi descoberto. Ele tentou fugir, mas foi preso e morreu na cadeia! Era ela quem gritava nos sonhos, era ela quem pedia para sair de lá, suplicando pela vida! E eu a tentava salvar! – Nikola estava consternado e chegou a derramar algumas lágrimas. Pediu um pouco de água e, em seguida, prosseguiu: - isso tudo me fez lembrar Helga... Como ela me faz falta!
-Nós pensamos que foste morrer! Teu coração parecia querer parar! Lembras de algo que viste lá na pedra?
-Não, nada...
-Olha, Nikola – interrompeu Christian – se dependesse desse aí, tu terias morrido. Não sei que médico é esse que, ao invés de salvar o moribundo, leva as mãos à cabeça e reza a Deus! Fala para mim, Maurice, és mesmo médico?
-Estás falando do quê? Logo tu que fugiste da Inglaterra por medo de te pegarem e condenarem à forca!
-Não comecem a trocar acusações novamente, por favor! – Nikola recuperava o rubor dos lábios.
-Afinal, quem é essa tal Helga, hein?
-Helga era o nome utilizado por uma jovem condessa da Áustria nas cartas que enviava à Nikola. Chamava-se Amália e se envolveu com ele durante nossas apresentações em Viena – iniciou Maurice.
-Hum, uma jovem condessa austríaca e um judeu? Parece um desses romances para moçoilas!
-Sim, eles se encontravam às escondidas, mas ela era prometida a um oficial da Hungria, quatorze anos mais velho. Os dois ficaram noivos e a cerimônia de casamento, marcada para um ano depois, teria reunido toda a nobreza austro-húngara não fosse a morte trágica de Amália...
-E como ela morreu?
-Assassinada! O futuro marido a matou! – Neste ponto, Maurice fez uma pausa, pois Nikola aparentava querer desmaiar novamente. 

***

   Nikola recebeu um pequeno bilhete das mãos de uma criada, enviada especialmente para aquela missão. “Meu noivo irá para Budapeste, venha me ver, hoje à tarde, na casa de campo nas cercanias de Viena. A portadora do bilhete lhe dará a direção. Tua H.’’ – assim dizia o papelucho de cor amarela. O rapaz sentiu o perfume de sua amada naquelas breves linhas. Seu coração palpitava e mil cores construíam, em sua retina, um futuro a dois, bem longe dali, distante de convenções e de palácios, onde pudesse dar azo ao seu amor. Imaginava-se, ao modo das antigas novelas de cavalaria e matiz homérico, desbravando mares, matando criaturas pavorosas, lutando contra exércitos inteiros para resgatar sua doce Amália. E o mel que vinha feito maná através de pensamentos, enternecia-lhe e dava a esperança de uma emoção que jamais experimentara.
   Debaixo do sol vespertino, selou o cavalo e, agitando todas as folhas ressecadas do caminho, galopou em desabalada carreira pelo bosque, dourado àquela hora, para simplesmente encontrar sua amada. Foi achá-la em um amplo cômodo, vestida em seda branca, de quem os cabelos negros emolduravam a pele alva e as duas safiras rutilantes que lhe incrustavam a face. Tocaram-se com o beijo supremo dos apaixonados, há muito separados, felizes pelo reencontro. Os braços cingiram o corpo um do outro; a brisa que trazia o canto dos pássaros pela janela, envolvia-os na aura natural de anjos e estrelas que só o amor verdadeiro conhece. Todavia, como os ditames do destino são muitos e misteriosos, os quais ora afagam e logo nos arremetem contra um muro intransponível; a ventura brevemente se dissipou – o oficial húngaro, noivo de Amália, abriu a porta do quarto repentinamente e flagrou Nikola junto da moça.
-Desgraçada! Então era com esse judeu que te amasiavas?  - Uma cena dramática teve lugar: Nikola tentou impedir que o oficial agredisse a chorosa Amália e terminou por levar um soco. Movido pelo ciúme, o noivo traído puxou de uma pistola: - o nome de minha família não será motivo de achincalhe no Império. Ah, judeu, farei com que conheças o teu lugar! – Amália, agarrada às botas daquele homem, implorava que não o matasse: - matá-lo? Não! Ele irá para a cadeia... Sob a acusação de ter assassinado uma jovem condessa austríaca! – Dito isto, encostou o cano da arma no alto da cabeça dela e atirou. O corpo caiu de lado – Amália estava morta. 

Continua...

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