Capítulo IV
O Rio de Janeiro admirava pela sua natureza exuberante, seus contornos exóticos contrastando com o calor tórrido e a presença maciça de escravos nas ruas. Um certo ar nostálgico beirando a estagnação, o aspecto colonial e os avanços aos poucos introduzidos, despertaram a atenção de Nikola, dando-lhe a impressão de um tempo que passava mais devagar - o colorido da cidade e suas cantilenas estavam longe da frigidez de sua Belgrado. Ficaram ali mesmo nas imediações do porto, no hotel Pharoux e, uma vez instalados, Maurice instou no dever de achar de pronto o seu amigo inglês. Mas tal era o cansaço da viagem que acabaram por adiar o projeto para a manhã seguinte.
O escritório da companhia de seguros ficava na Ouvidor, a vinte passos do Largo de São Francisco; para lá caminharam perto das dez, com um sol não muito amistoso a fazer de curto trecho um deserto intransponível. Carruagens, transeuntes, vendedores ambulantes, animais de tração, escravos de ganho; um movimento confuso em um dos mais importantes logradouros da capital. Maurice perguntava daqui e dali qual era a direção até que o acaso o abordou de forma abrupta:
-Maurice Corbeau, o que fazes aqui no Brasil? – Interpelou-o um homem bem trajado, aparentando mal chegar aos quarenta e com sotaque francês.
-Casimir? Há quanto tempo! – Respondeu Maurice algo aturdido.
-E então, vieste desfilar a tua patifaria aqui no Rio de Janeiro?
-Minha patifaria?
-Corrompeste o estudo mais nobre, desviaste o simples objetivo, obtiveste a resposta dos ganhos materiais, fizeste carreira e conhecimento em toda a Europa... Traíste-me! Não penses que farás o mesmo nestas plagas somente porque aqui não corre a tua fama! Vim para cá pelo fato de encontrar no Brasil pessoas sérias que buscam os fenômenos extraterrenos pelo bem da ciência! Não permitirei que venhas macular e enriquecer a custo de nosso trabalho – faço correr a tua fama em dois tempos!
-Ora, mas o que é isso? Depois de muitos anos sem nos vermos, é assim que me recebes? Esquece-te que fomos amigos e...
-Fomos amigos até o momento em que descobri seres um mistificador, explorador da confiança e boa fé alheias! E este aí, quem é? É o tal que te ajudaste a fazer fortuna na Europa? Tive notícias das apresentações – espetáculo de mau gosto! – E dirigindo-se para Nikola, perguntou: -rapaz, o que tens a ganhar na companhia deste homem? Não vês que ele só te explora? Ou será que ganhas também lá o teu quinhão?
-Não, senhor! – Retrucou Nikola sereno e resoluto – este homem, a quem chamas explorador e corrupto, salvou-me a vida!
-Muito bem, um fato a contar a teu favor no dia do Juízo, Maurice! Passar bem! – Casimir seguiu e dobrou a esquina próxima. O francês sorriu um sorriso acanhado e Nikola o encarou fixamente para depois baixar as vistas e continuar na procura do endereço correto - não comentaram entre si aquele encontro constrangedor.
O escritório funcionava em uma sobreloja e, em sua decoração, tudo recendia ao espírito britânico. Lá disseram que Christian deixara de trabalhar havia tempos e que se instalara em um cortiço no Morro do Castelo – fora mandado embora, mas não quiseram revelar por quê. Foi um tanto difícil chegar ao lugar que passara a habitar. Tomaram um carro que os levou a um ponto em que se podia deslumbrar-se com o panorama da Baía e da Serra; um prédio antigo e ruinoso ameaçava precipitar-se barranco abaixo. A portuguesa, senhoria do cortiço, apontou um quarto nos fundos e disse que lhe devia meses de aluguel. A cena no recinto era deprimente: o homem, de vestes ensebadas, ressonava alto no catre e pelo chão, umas dez garrafas de bebida espalhadas. As paredes estavam mofadas, o soalho, podre; o cheiro parecia insuportável.
-Christian, Christian, acorde! – Maurice sacudia o homem dando-lhe tapinhas no rosto. Christian mexeu-se, abriu vagarosamente os olhos, tentou fixar as vistas embaçadas e por fim disparou: - quem és?
-Ora, quem sou eu? Sou Maurice, esquece-te?
-Maurice? Maurice... Maurice... O que fazes aqui?
-Ah, seu beberrão miserável, não te lembras do que combinamos? – Maurice pegou um pequeno jarro de água que havia em uma mesinha e despejou seu conteúdo na fronte de Christian – acorda logo, miserável!
-É com este bêbado que pretendes fundar uma companhia? – Provocou Nikola.
-Fundar companhia? – O inglês fazia umas caretas enquanto se enxugava com a fronha do travesseiro – que companhia?
-Uma companhia de seguros para cuja sociedade o senhor convidou Maurice Corbeau, a montar-se nesta cidade por ser terra de negócios promissores!
-Companhia de seguros? – Christian deu uma ruidosa gargalhada – que mentira andaste contando, Maurice? Mal tenho vintém para comprar essas garrafinhas aí, que dirá fundar uma companhia de seguros.
-Ora, seu bêbado ordinário! – Maurice catou Christian pelas bordas do paletó.
-Maurice, solte-o! Eu já desconfiava que tu mentias. Esse teu súbito interesse em fenícios, Cartago, Aníbal; aquele desenho da montanha de cume achatado, parecendo uma bigorna... É a mesma montanha que vi da entrada da barra!
-Ah, então foi isso que os atraíste até o Brasil, Maurice? Acreditaste mesmo nisso de tesouros escondidos? Ora, aquilo foi uma lenda que ouvi dos nativos...
-Nós nos encontramos em Paris, não te lembras? Falaste do tesouro, que poderíamos dividi-lo, que teria o suficiente para ambos ficarem muito ricos! Prometeste encontrar-me aqui no Rio de Janeiro e levar-me até lá! Deste inclusive o desenho feito da montanha por não sei quem! – Dizia Maurice entre os dentes e com ímpetos de esganar Christian.
-Lembro-me vagamente, mas lembro. É, de fato eu disse que haveria um tesouro fenício escondido... Queria montar minha própria companhia... Agora vês? Estou sem meu trabalho, sem tesouro e com dores na cabeça... Tolo fui eu em acreditar nessa lenda... E tu mais ainda por dar crédito a um – como é mesmo? – bêbado ordinário! – Christian mantinha o ar jocoso de um homem embriagado. Maurice soltou-o por fim e arremeteu-se contra ele armado de uma garrafa. Nikola impediu por pouco a agressão.
-Maurice, contenhas-te! Mais tenho eu motivos para dar com esta garrafa na tua cabeça! Mentiste acintosamente e para quê? Para mais uma vez explorar meus dons?
-Nikola, como podes?
-Queres que eu me desdobre tal como fiz em muitas sessões e ache para ti a entrada da montanha, não?
-Nikola, tens mesmo um dom poderoso. Veja: se nos ajudar, poderás ser um homem rico, comprar quantas lojas e fábricas quiseres em Belgrado e em todo o Império Austro-Húngaro! Basta que descubras o caminho... Não é algo difícil para ti!
-Não contes comigo! Se perdeste a fortuna que construíste em cima da boa fé alheia, não me diz respeito! Vais tu com teu amigo; procurem pelo tesouro sozinhos... Eu volto para Belgrado no próximo vapor! – Nikola saiu batendo a porta.
Continua...
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