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O Último Fenício - Final


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   A Pedra erguia-se majestosa, reinando no ponto cardeal mais a Oeste. O formato chato do topo, o corpo robusto pela imensa massa pétrea, coberto de tapete esmeraldino cuja vegetação mal houvera sido tocada; davam-lhe o aspecto de uma criatura adormecida, de sono vigilante, porém, capaz de cobrir todo o espaço da cidade com um olhar de soslaio. Viam-lha espelhar-se nas águas da Lagoa e, de qualquer monte ou ajuntamento de terra, permitia divisar-se lhe no horizonte a silhueta. No todo, confundia-se com as demais peças da difusa cordilheira da natureza acidentada do Rio de Janeiro.
   Nikola mal levantou as pálpebras e deu um salto: pontas de lanças voltavam-se contra ele no que parecia um corredor escuro. Identificou-os, talvez, como sendo índios, devido o tipo físico, a cor acobreada da pele e as vestes. Traziam alguma tintura no corpo e os cabelos longos e negros. Falavam em língua estranha e, acossando-o com as setas, obrigaram-no a andar. Enquanto ia assim, desarmado, para um destino incerto, reparou no lugar e deduziu estar dentro da rocha. Curiosamente, entretanto, aquela formação geológica diferia das demais: as paredes recurvadas pareciam viscosas e o próprio chão, um tanto macio, assemelhava-se ao couro de algum animal vivo. Um odor bilioso chegava-lhe até as narinas e um ronco, longínquo e surdo, ecoava por ali.
   -O que será isso? Para onde me levam? Como saio daqui? – Interrogava-se – creio que a pergunta certa seja: como cheguei aqui?
   Conduziram-no a um salão aberto na caverna, maior que um teatro desses que se vê por aí. Metade deste salão, contudo, era tomado por um tanque de líquido turvo, de um verde enegrecido. Um trono fora posto em sua beirada e uma grande população indígena esperava por algo ou alguém. Era o início de algum ritual de sacrifício, de um culto misterioso do qual seria vítima? Não sabia. Apenas pôde ver que Maurice também estava ali, escoltado por dois daqueles índios e suas já conhecidas lanças. Nikola parou a seu lado; trocaram alguns olhares, onde o francês teve ensejo de fulminar o rapaz, como se fosse culpado por tudo o que acontecia. Quando iam falar qualquer coisa, um burburinho anunciou a chegada de alguém, no que todos se voltaram para a extremidade contrária do tanque: um homem, trajado com vestes principescas, adornado de muito ouro, fez uma entrada silenciosa e não menos impactante. Os índios baixaram-se em sinal de reverência e ele pôde enfim passar e sentar-se no trono.
   -Espero que meus convidados estejam sendo tratados da melhor maneira! – Iniciou a figura misteriosa. Um tecido branco e fino, aparentando linho, cobria-lhe o corpo; tinha a tez morena em vívido contraste com os braceletes, anéis e o peitoral de ouro incrustado de lápis-lazúli. Tinha também uma mitra e um cinturão, sandálias e capa. O rosto imberbe e jovial dava a impressão de bondade e complacência – ambos foram trazidos aqui, pois tencionavam encontrar a entrada do nosso monte; pois bem, aqui estão!
   -Quem és tu? O que fará conosco? – Perguntou Maurice.
   -Perdoe-me, eu não me apresentei: eu sou o rei Amílcar, o último fenício reminiscente de Cartago.
   -Então era verdade? Esta terra foi mesmo habitada por fenícios! Então... Então existe um tesouro! – Os olhos do francês encheram-se de cobiça.
   -Sim, esta terra acolheu meu povo após a destruição de Cartago pelos romanos. A história que se conta e contará daqui por diante não será a real. Aliás, homem algum além de vós saberá a verdade. Contar-se-ão muitas histórias ainda até que a verdade possa ser revelada...
   -E qual é a verdade? – Maurice quis saber.
   -Cartago caiu e muitos se lançaram ao mar para fugir da destruição. Durante muito tempo navegaram até encontrar estas plagas ditosas, onde puderam reerguer uma civilização tão magnífica quanto aquela dos fenícios em Tiro e depois no norte da África. Palácios, templos, avenidas foram construídos; estabelecemos rotas comerciais e nos espalhamos por todo o território; fizemos contatos, amizade com os povos que já existiam aqui e nos miscigenamos. O novo governo, porém, composto pela família real e a classe sacerdotal, manteve-se intocado, muito embora manifestasse a vontade da coabitação pacífica. Algo, aliás, que garantiu a nossa sobrevivência. Entretanto, nossa civilização perdeu vigor: vieram as epidemias, conflitos intestinos, o sumiço de rotas comerciais – a decadência! A chegada de colonizadores, vindos do outro lado do mar, foi o ápice. Aí tivemos que nos recolher em pequenos núcleos, alguns dos quais subsistem independentes ainda hoje. Há túneis que levam ao Norte e ao Centro que saem daqui da Pedra. Mas eles estão fechados, ninguém mais os atravessa; não temos mais contato com os outros núcleos. Eles se distanciaram e se tornaram outra cultura. Nenhum deles tem mais os traços que vós podeis ver em minha face, único membro da família que preservou o legítimo sangue fenício. E pensar que este lugar foi um grandioso templo, que possuía o formato de um touro alado com cabeça humana, em honra de nosso supremo deus!
   -E quem é o seu supremo deus? – Perguntou Nikola.
   -Vedes estes homens e mulheres que aqui estão? Eles são o povo aliado que buscou abrigo ao extermínio que os colonizadores promoveram. Eles se empenharam na proteção deste santuário e aqui sobrevivem, junto a mim, auxiliando-me a preservar tudo o que restou. Foi o nosso encontro que nos despertou para a verdadeira divindade protetora, aquela que se levantará quando for a hora: Tupa’al – ao pronunciar este nome, levantou as mãos espalmadas e levou-as ao peito em seguida, baixando a cabeça – muitos dentre nós desceram e se misturaram entre os colonizadores. Entretanto, nenhum deles pode vir aqui. As entradas estão fechadas a qualquer intruso, Tupa’al nos protege!
   -E como entramos? – Nikola estava assustado, mas tentava manter a calma.
   -Vós fostes trazidos até aqui por vontade de Tupa’al. Do contrário, jamais teriam conseguido!
   -Isso tudo é uma loucura! – Exclamou Maurice – eu vim aqui por causa do tesouro e encontro uma trupe de doidivanas!
   -Está na hora de invocar nosso deus, ele nos dirá quais os seus planos para vós! – Dito isso, deixou o trono e postou-se diante das águas sombrias, cujo fim se perdia em câmaras ainda mais escuras ao fundo, e que mal podiam ser vistas – Tupa’al, senhor do tempo; aquele que conhece o presente, o passado e o futuro; que pode parar o sol e descendê-lo; que pode parar o vento; ouça-nos! – Enquanto orava, o rei era acompanhado por um coro lânguido de vozes mortiças que repetiam o nome do deus, cantado sem cessar. Inopinadamente, um grunhido alto ressoou e as águas começaram a se agitar cada vez mais, partindo de fortes vagas que vinham do centro.  Algo saía dali vagarosamente: uma massa disforme, depois assumindo um aspecto humano, logo causou espanto quando Nikola e Maurice perceberam que o vulto que vinha na direção deles era o do – Christian! – Exclamaram juntos.
   -Para mim basta! – Gritou o francês – a sorte é que sempre carrego uma pistola escondida nas botas! – Deu dois tiros para o alto e com outro alvejou as costas do rei, fazendo-o cair e afundar. Imediatamente, toda a caverna começou a tremer com o grunhido que aumentava ainda mais. Os índios correram gritando, buscando fugir dali. As águas aumentaram de volume e arrastaram Maurice e Nikola. O judeu sentiu seu corpo mole, crivado de frio lancinante, boiando; sufocava e, contraditoriamente, estava em paz. Não lograva enxergar mais nada. Entregou-se àquela força misteriosa sem resistência. Não sabia mais do Christian ou de Maurice, não sabia mais de Helga; sabia da morte e para seu colo ia com volúpia, porquanto o livrasse de vez de tudo aquilo em que se metera. A morte... A morte... Alívio, enfim!
***
   Nikola despertou sobressaltado em uma fria manhã de Belgrado. Havia transpirado durante o pesadelo que tivera. E se a cama não fosse suficientemente grande, cairia certamente, de tanto que se debatera. Três toques soaram na porta. Levantou trêmulo, vestiu o roupão e foi ver quem era: um criado do hotel trazia um papelucho e nele, uma mensagem. Leu brevemente o que havia escrito: - então foi tudo um terrível pesadelo! – Respirou fundo, amassou o bilhete e voltou a dormir.

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