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O Último Fenício II



Capítulo II

   O corredor estava escuro, mas conhecia a direção da porta. Quando os gritos recomeçaram, catou a picareta que estava ao seu lado e correu o mais que pôde. Sabia exatamente o que fazer: seus olhos, ainda que com muita dificuldade, lograram divisar os contornos da porta. Subiu o pequeno lance de escada e cravou a ponta de ferro na madeira, desfazendo-a em pedaços. Quando tentou atingir a parede por detrás, ouviu-se retinir como se fosse feita de metal. Por mais esforço que fizesse, a parede não cedia – só se ouvia o reverberar semelhante ao dos sinos, misturando-se com o terrível choro de desespero. A picareta partiu-se feito vidro em suas mãos...
   A boca se abriu, mas o ar não veio; a garganta parecia agrilhoada por mãos invisíveis – sufocava! O peso no peito, as vistas nubladas, os braços batendo-se violentamente no ar. Inopinadamente, tudo desapareceu! Saltou da cama, correu até o jarro disposto na cômoda, bebeu a água em goles grandes e banhou a nuca com o que restou – “ainda morro disso” – pensou. Recuperando-se gradualmente, foi vestindo as peças de roupa, uma a uma, cantando cantigas em hebraico para distrair-se da lembrança vívida do sonho – “quando, meu Deus, isso deixará de me perseguir?”
   Nikola Koen era um judeu de origem sérvia. Não se tem notícias de seus pais e nem como seu avô chegara a Belgrado. Dizem que migrou da Rússia; o fato é que o velho Ivo fizera alguma fortuna com a loja de tecidos, onde vendia seda e linho de excelente qualidade. Criou Nikola com certo conforto e desde cedo tentou fazê-lo um homem do comércio. O rapaz, porém, nunca fora afeito ao serviço de caixeiro a que Ivo lhe incumbira. Metia-se com livros o quanto podia e fugia das obrigações religiosas. O velho achava ruim, mas terminava por perdoar-lhe. O escândalo, no qual o neto se envolvera em Viena, matou o avô de desgosto; e Nikola, assim que se livrou da dura pena, vendeu os seus bens, recuperou o dinheiro da herança e trancou-se em um quarto de hotel. Sua personalidade nunca fora expansiva. Era antes recolhido em seus pensamentos e reservado. Após todos aqueles acontecimentos, Nikola adotou um ar ensimesmado e soturno, agravando mais os traços que possuía. Alto, de tez alva e um início de calva, jamais se casara. Ou Melhor: jamais admitiria se casar com mulher que não fosse Helga. Foi ele quem viajou até Marselha e tomou o camarote de número três no vapor que seguia para o Brasil. O ruído no outro camarote denunciava que seu amigo já estava de pé.
- Entre, a porta está aberta! – Disse a voz vinda do interior – ah, és tu, Nikola? Pensei que fosse o serviço que mandei vir. Dormiste bem?
- Não, não dormi... Parece que está piorando: agora me vejo com uma picareta nas mãos e tento derrubar a parede. Mas a parede é de metal! Algo queria me sufocar. Livrei-me a muito custo!
- Então agora tens uma picareta e tentas derrubar uma parede de metal?
- Sim, e a picareta se parte!
- O sonho parece que evolui... Como em uma história!
- Talvez... Isso só pode ser um sinal...
- Não, não há sinal algum. É apenas a tua mente que não conseguiu livrar-se de tudo o que se sucedeu em Viena.
- Não queres mesmo reconhecer, não é? Pode ser que Helga queira falar algo comigo... Ela está em perigo...
- Quantas vezes terei que te dizer que ela está morta? Tu mesmo viste, com esses teus olhos, o tiro que ela levou!
- Por favor, não me faças recordar isso!
- Perdoe-me.
- E tu? Estás aí a fumar charuto, a tomar um grogue... E que livro é esse?
- Ah, um livro que fala sobre Aníbal e Cartago. Se o livro não for bom, ao menos desta vez o fumo e a bebida são de primeira, queres experimentar?
- Não, obrigado... Não sabia que te interessavam os cartagineses.
- É só um passatempo, a viagem é longa e... Hum, estás ouvindo? Que burburinho será esse? – Levantou-se e saiu para ver o que era. Nikola reparou que havia ainda um livro sobre a História dos fenícios, em cima de uma mesinha, e o desenho estranho e disforme do que se assemelhava a uma montanha de cume chato. Não pôde se deter muito naquilo porque logo o outro lhe chamou: - venha depressa, Nikola!
   A duas portas dali, uma mulher se agitava na cama, tendo horríveis convulsões. Seu esposo, auxiliado por dois tripulantes do navio, tentava contê-la, debalde. Ele rezava e, empunhando o livro sagrado, tentava expulsar o que dizia ser ‘demônios’. No lado de fora do camarote, uns curiosos já se juntavam. Assistindo a tudo impressionados, Nikola e o amigo abriram passagem – não sem certa dificuldade – e este ofereceu seus préstimos.
- Com licença, eu sou médico, eu posso ajudar...
- Não, não podes! – Disse o esposo ao se voltar – eu sei muito bem quem o senhor é! É o tal de Maurice Corbeau, o magnetizador... Ou melhor, o mistificador! Minha mulher está possuída por demônios e isso se deve à sua presença neste navio!
- Senhor, antes de ser magnetizador, eu sou médico! Por favor, deixe-me ajudar a sua esposa!
- Não encoste nela! Nós o vimos andando na tolda; ela disse sentir medo do senhor porque conhecia a sua fama! Eu sempre a adverti que nessas reuniões, das quais o senhor participava, invocavam o demônio! E agora está aí a prova: foste tu que colocaste o demônio no corpo dela! – Proferiu estas palavras entre os dentes e o semblante rubro denotava raiva. Ergueu novamente o livro sagrado e disse: - vai-te daqui, demônio! Vai-te daqui!
Nikola meteu-se entre ambos para evitar que a contenda recrudescesse. Neste instante, a cômoda tremeu, arrastando-se para adiante, derrubando no chão tudo que estava sobre ela. A mulher sossegou de imediato e Nikola, desmaiou.

Continua...

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